Para Sachs, um dos criadores do conceito ecodesenvolvimento, a economia não pode ser verde, sustentável, se não tiver o vermelho, do social
Uma das principais referências no mundo quando o assunto é desenvolvimento sustentável, o professor da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris Ignacy Sachs recorre às cores da bandeira de Portugal para ilustrar o que, para ele, é a principal questão da atualidade: “Não adianta ter o verde se não tiver o vermelho.” Para Sachs, um dos criadores do conceito ecodesenvolvimento, a economia não pode ser verde, sustentável, se não tiver o vermelho, do social.
“Se não formos capazes de reduzir as desigualdades, vamos continuar no mesmo processo de disputa pelo produto material com consequências ambientais cada vez mais sérias e que vão tornar impossível a continuação desse processo”, alerta.
Ignacy avalia que o Brasil tem uma grande oportunidade na exploração sustentável dos seus recursos hídricos. “O país poderia virar a maior potência mundial em produção de piscicultura. O peixe contra o bife. Recursos aquáticos são uma das grandes forças deste país”, aposta.
O ecossocioeconomista polonês, naturalizado francês, com fortes ligações com o Brasil, defende que o litoral do Nordeste, lagos de represas, rios e até pequenos açudes podem gerar um novo ciclo de desenvolvimento. “Vamos sair da fase da caça – a pesca profissional – para a piscicultura. Como aconteceu com a pecuária”, explica. “O Brasil poderia virar a maior potência mundial em produção de piscicultura. E a Bahia tem um potencial extraordinário para isso”, lembra. O litoral baiano é o maior do país.
O Valor da Água será o tema de Sustentabilidade, segundo seminário a ser realizado pelo Fórum Agenda Bahia. Em mais de duas horas de entrevista ao CORREIO, no Rio de Janeiro, Sachs põe o dedo na ferida em questões polêmicas, defende a eficiência no uso dos recursos hídricos e ainda um novo contrato social e estilo de vida da população. “Pessoas como eu têm a função de semear ideias. Depois, alguém pode pegar e levar adiante”.
O senhor esteve no Brasil para participar das discussões da Rio+ 20. Qual sua avaliação a respeito da Conferência da ONU para o Desenvolvimento Sustentável?
A poeira ainda não baixou. O que se pode dizer desde já é que foi reforçado o cacife do Brasil como um dos formuladores das políticas internacionais relativas ao desenvolvimento includente e sustentável. Isto implica em novas responsabilidades na definição de uma agenda comum de políticas e pesquisas futuras a serem implementadas com a participação das comissões regionais da ONU, Banco Mundial, bancos regionais e demais instituições da ONU, com o Brasil e, possivelmente, a Índia como os dois abre-alas do bloco dos países emergentes. Se dependesse de mim, atribuiria uma alta prioridade ao diálogo entre esses dois países, promovendo uma colaboração mais estreita entre as principais universidades dos dois países, visando uma forte intensificação de intercâmbio de bolsistas e definindo eixos de pesquisa de interesse comum ao redor da problemática do aproveitamento dos recursos renováveis dos biomas tropicais e subtropicais, com destaque para a interface terra/água (produção de alimentos e energia com geração em grande número de oportunidades de trabalho decente nos “dike pond systems” – uma espécie de fazenda marítima), adaptados às regiões litorâneas, à Amazônia, aos lagos de represa, etc.
E qual teria sido o melhor resultado para a conferência?
Primeiro, a consolidação do bloco dos (países) emergentes. Em segundo lugar, para mim, seria ideal juntar a ideia do contrato social com a volta ao planejamento. Existem os objetivos sociais, a viabilidade ambiental que não podemos mais abstrair – porque pode comprometer todo o processo – e para que as coisas aconteçam é preciso dar uma viabilidade econômica. Todo o debate passa por esse tripé.
Mas nem sempre todas as pernas são preservadas?
Infelizmente, sempre aparecem aqueles que privilegiam um pé do tripé ou apenas os outros dois. Não há razão para pensar que o desenvolvimento consiste unicamente na acumulação de bens materiais. Quanto mais rápida for reduzida a desigualdade abissal que existe hoje, mais rapidamente podemos entrar em uma fase de desenvolvimento na qual o problema não será mais aumentar o produto material e, sim, manter um nível razoável de material per capita para todos. Se a gente fizer um esforço para reduzir as enormes diferenças de consumo material que existem hoje de um lado, e continuar no processo da educação, vamos chegar a um momento de dizer: ‘basta’, para não manter o nível de consumo que existe hoje.
Esse parece ser um ponto fundamental para o senhor: não é possível a humanidade manter esse modelo de consumo e produção atual.
Não, não há mais razão para isso. Tenho uma visão otimista. De se fazer uma repartição mais equitativa do produto material de maneira a colocar a humanidade numa nova era. (…) Isso vai significar que, para produzir a parte material, com mais tecnologia, implicaria em menos tempo de trabalho. Poderia usar parte dessa redução para diminuir o ‘homo faber’ (homem que produz) e dar maior projeção ao ‘homo ludens’ (o historiador Johan Huizinga sustenta o jogo e a brincadeira como algo inato do homem). Essa é para mim a problemática do futuro: se não formos capazes de reduzir as desigualdades sociais, que estão inerentes na maioria dos modelos presentes no mundo, vamos continuar no mesmo processo de disputa pelo produto material, com consequências ambientais cada vez mais sérias e respostas negativas. Em certo momento, essas consequências ambientais vão tornar impossível a continuação do processo.
O senhor acha que estamos em um período de transição entre esses dois modelos, ou ainda estamos engatinhando?
A nossa tarefa do momento é não cair no pessimismo radical do tipo ‘estamos caminhando para uma catástrofe, salve-se quem puder’… Não, nós não estamos enfrentando uma situação desesperada. Mas os problemas se tornaram mais complicados. Alguma coisa está acontecendo de positivo, mas não acontece em escala suficiente para dar garantia de que não entraremos em uma crise ecológica que traria consequências sociais terríveis. Por isso, insisto tanto na necessidade de trabalharmos o social, o ecológico e o econômico juntos. Não separar essas discussões. Esse é nosso objetivo: ao melhorarmos o lado social, vamos relaxar no lado do crescimento material. O céu é o limite para as atividades não materiais. Os limites estão nos recursos não renováveis, no aquecimento global, mas não há limites para atividades culturais e lúdicas. Vamos deixar às gerações futuras o cuidado de fazer o bom uso do tempo.
Dentro desse conceito, como alimentar mais de sete bilhões de pessoas de forma sustentável. A agricultura, por exemplo, é uma das atividades que mais consomem água. É possível?
Não tenho competência técnica para responder a isso. Mas o grau de desperdício de modelo atual de água é tal que temos um enorme espaço para melhorarmos a eficiência. A água é considerada como uma dádiva do céu, se fazia com ela o que se queria, como queria… Fizemos muito pouco esforço para captar a água da chuva. No dia em que a água começar a faltar, imagino que programas de construção de cisternas e açudes deverão ser considerados. São coisas relativamente fáceis e não muito caras.
Em muitos lugares já há falta de água, como na Bahia…
Uma boa pergunta para se fazer é: quantos bilhões de seres humanos podemos manter em boas condições de consumo com o conjunto dos recursos do planeta, ao nível dos nossos conhecimentos de hoje? Não tenho resposta, mas penso que não estamos enfrentando os problemas de escassez material do qual exigiria uma resposta.
O senhor acha que a água pode ser como petróleo, uma commodity com preço do barril cotado no mercado internacional? Essa escassez pode levar à guerra?
Que pode suscitar guerra, pode. Ser cotado na Bolsa de Valores, acho meio difícil. Escassez de água pode virar um caso bélico. O problema da água é que o transporte é complicado. Não vai engarrafar água no Brasil para vender na Rússia. Água tem que ser administrada localmente.
Como sensibilizar a sociedade sobre as questões da sustentabilidade?
Não é sensibilizando a sociedade pública que vamos resolver o problema. Conferências como a Rio+20 servem para que os governos sentem à mesa e pensem qual é a sua responsabilidade nesse processo. Planejamento. Essa capacidade de pensar em alternativas hoje nos dá possibilidade de lançar mão de tecnologias, instrumentos que não tínhamos antes. Esse é o nosso paradoxo do começo do século 21: estamos melhor armados para planejar do que as gerações anteriores, mas estamos deixando isso de lado. É aqui que nós temos que dizer ‘basta’. Se extrapolarmos as tendências atuais, vamos entrar em uma fase de dificuldades crescentes provocadas pelo aquecimento global.
Quando o senhor fala em planejamento seria em vários níveis, do global ao dia a dia das pessoas. O senhor estava reclamando do trânsito do Rio…
Claro. Qual é o potencial dos recursos a serem destravados? E quais são os obstáculos para sua utilização. Cada caso é um caso. Deve-se mobilizar a população local, abrir a perspectiva de utilização melhor dos recursos que estão ao redor.
Como o Brasil pode melhor usar os recursos hídricos?
Vocês têm potencial hídrico extraordinário. Acredito muito na piscicultura. É possível produz grande quantidade de proteína animal, com uma variedade que se controla, em um pequeno açude…
Pouco se explora essa questão no país..
Para mim, esse é um dos grandes temas do Brasil. Vamos sair da fase da caça – a pesca profissional – para a piscicultura. Como aconteceu com a pecuária. E aproveitar o potencial extraordinário que vocês têm. É possível usar também para consumo próprio. Trabalhei com um grupo americano interessado em criar piscicultura nos porões de prédios de Washington de classe pobre. É só pegar um tanque e aplicar os métodos: chega-se à produção de peixes fabulosos para aquele universo.
E a custo baixo?
Extremamente baixo. A piscicultura em pequenos açudes poderia ser fundamental no desenvolvimento rural. Pra mim, no caso do Brasil, a piscicultura tem um papel fundamental para enriquecer o conceito de propriedade rural. Isso não está sendo enfatizado.
Como poderia ser na Bahia?
Primeiro, o governador (Jaques Wagner) é aberto a coisas desse tipo. Segundo, há condições tanto no litoral quanto no interior. No litoral, tem esses recifes que geram lagos e a água acaba renovada com maré alta. Há condições excepcionais de se criar a piscicultura nesses lugares. No (rio) São Francisco também. Há ainda as bacias, os lagos de represas, os rios, tem também a Amazônia. A cultura do brasileiro é carne vermelha. Mas investir em piscicultura é uma estratégia de desenvolvimento a ser considerada. Tem um potencial extraordinário. Se for calcular, facilmente o Brasil poderia virar a maior potência mundial em produção de piscicultura. O peixe contra o bife. Recursos aquáticos são uma das grandes forças deste país. Não sou inimigo da pecuária. O Brasil tem futuro nessa área, mas desde que a torne menos extensiva, articulando melhor com outras produções.
Fonte: http://www.correio24horas.com.br