Lavradores trocam feijão por tilápias

No cenário da caatinga tórrida do Ceará, Antônio do Nascimento costumava andar horas com tonéis no lombo do jumento para buscar água no assentamento onde mora, próximo ao Açude do Castanhão – o maior do país, equivalente a duas vezes e meia a Baía de Guanabara. Após três anos, quando lá voltamos para nova reportagem, em 2008, nada havia mudado.

Neste mês, no ápice da seca que já dura dois anos no Nordeste, a visita aconteceu pela terceira vez, mas constatou uma realidade bem diferente: o rapaz trabalha hoje com carteira assinada na produção de peixes em cativeiro, casou-se com a professora da escola e seu povoado já tem água encanada. “A meta atual é ter o próprio lote para criatório no açude, sendo dono do negócio”, conta Nascimento, vestido com camisa social em lugar da roupa de couro tipicamente sertaneja que antes o protegia do sol.

Seu pai, o lavrador Francisco Nascimento, há mais de um ano não colhe nada na roça e, sem previsão de chuva, não arrisca plantar. “Nos últimos anos, muitos desistiram e foram embora”, diz. Agora há alternativas. Com água na torneira, sobrou tempo para outras atividades. A motocicleta guardada na varanda da casa, por exemplo, foi comprada com o dinheiro de serviços de pedreiro e da comissão pela venda informal de mercadorias a crédito, atividade que cresce no interior nordestino a partir da renda dos aposentados, do Bolsa Família e do acesso ao consumo. Sinal de novos tempos para o semiárido que se urbaniza e muda hábitos com a chegada de projetos econômicos e água em lugares antes reféns de carros-pipa?

Na busca por respostas, o Castanhão destaca-se na rota dos açudes nordestinos. Formado pelo barramento do rio Jaguaribe, ao custo de R$ 600 milhões, o reservatório foi projetado com o principal propósito de abastecer a Região Metropolitana de Fortaleza, onde vivem 3,7 milhões de pessoas, e registrou no último ano aumento de 30% na demanda hídrica.

Transportada pelos 55 km do Canal da Integração, que já consumiu R$ 1,2 bilhão e tem projeto para ser duplicado, a água servirá ao polo industrial da capital, que ganha uma nova refinaria, e à ampliação do Porto do Pecém. Ao longo do trajeto, vigiado por segurança armada como um patrimônio de valor, o recurso hídrico é utilizado para irrigar polígonos de fruticultura para exportação.

tilapia

Dez anos após a inauguração, em 2002, o açude vive hoje a febre da piscicultura, turbinando a economia de Nova Jaguaribara, construída para substituir a antiga cidade engolida pelas águas após a obra. A atividade movimenta mensalmente R$ 4,5 milhões, o triplo da arrecadação com o Fundo de Participação dos Municípios, sem contar os valores indiretos relativos à venda de insumos e maquinário. São gerados 2,4 mil empregos. “Sem peixes, o município vai à falência”, ressalta Cosme Bezerra, dono de 1,2 mil m2 que ganhou para produzir no açude, com renda mensal de R$ 2 mil. Nas horas vagas, ele trabalha como diarista em tanques de criação de empresas. “Enquanto na roça a diária é de R$ 25, na piscicultura chega a R$ 40”, diz o produtor, antes sustentado pela pecuária leiteira nas terras do pai, desapropriadas para o enchimento do lago.

Lavradores migram da roça para as águas do açude. São ao todo 634 produtores de tilápia, a maioria empreendedores individuais que ganharam lotes de água onde podem ter no máximo 25 gaiolas. Além deles, por meio de licitação, 12 empresas receberam o direito de explorar peixes, pagando pela concessão R$ 200 mensais por hectare. Há ainda um grupo de produtores não onerosos – 72 famílias de um assentamento, com renda média de R$ 1,2 mil por mês.

O Castanhão produz 900 toneladas de pescado por mês, um terço da capacidade projetada. “O déficit é consequência da falta de empréstimos e de recursos próprios para investimento”, explica Francisco Jaime de Oliveira, do Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCs), em Nova Jaguaribara. Ele chefia a estação que ocupa 6 hectares no açude para fornecer anualmente 25 milhões de alevinos (filhotes de peixes) pela metade do preço de mercado a produtores do parque aquícola.

O plano é construir quatro unidades para higienização dos peixes, hoje tratados inadequadamente a céu aberto na beira do açude. Uma usina para produzir óleo a partir das vísceras, com investimento de R$ 700 mil, está em negociação com a Petrobras. E mais R$ 2,8 milhões estão previstos para uma planta de beneficiamento, capaz de agregar valor ao produto final e reduzir riscos sazonais, como o atual prejuízo em função dos preços da ração. Em decorrência da seca, o valor do insumo disparou, elevando o custo da produção a R$ 4,20 por quilo de pescado, vendido por R$ 4,00.

Na perspectiva dos lucros, produtores instalaram tanques-rede acima do limite permitido para ocupar o máximo do espaço e depois requisitar a regularização junto ao Ministério da Pesca. A iniciativa pode causar impactos ambientais. “A maioria está irregular”, revela o produtor Emídio de Oliveira, admitindo fazer parte dessa lista. Conhecido na região como o “rei do peixe”, ele vendeu o pouco que tinha na roça, trabalhou na construção civil e investiu as economias na nova atividade, faturando hoje R$ 430 mil mensais. “Para expandir, só alugando espelho dágua junto a terceiros”, afirma Oliveira, indicando a proliferação de negócios envolvendo as concessões do governo federal.

A corrida pela piscicultura contrasta com a lentidão das melhorias no campo. No povoado Mandacaru, os moradores escalavam os canais para pegar água com baldes para dar aos animais de criação. Recentemente, foi instalada a rede de distribuição, mas na atual estiagem que castiga o município a comunidade é obrigada ao racionamento: para evitar o colapso do abastecimento das grandes fazendas irrigadas e das cidades maiores, a vazão da água foi reduzida no vilarejo.

Sorte de quem produz sem depender do canal, como o lavrador Raimundo da Silva, que planta feijão à margem do rio Jaguaribe, perenizado pelo Castanhão. A conta de energia para puxar a água é cara, mas não chega a ser um grande problema. “Em tempo de aperto, trabalho na piscicultura e recebo peixes sem valor comercial como pagamento”, diz.

Fonte: http://www.sondabrasil.com.br