O documento define um modelo de gestão e de manejo sustentável dos recursos pesqueiros para preservação dos estoques, beneficiando famílias que vivem da pesca. O trabalho foi desenvolvido em um dos maiores estuários do País: dos rios Timonha e Ubatuba, divisa litorânea entre Piauí e Ceará, na Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba.
Cientistas fizeram levantamento da fauna aquática da região, estudaram o hábito das espécies presentes, analisaram a qualidade da água e subsidiariam a elaboração de um protocolo para a exploração sustentável, o qual embasou o Acordo de Pesca. O objetivo é garantir a preservação do meio ambiente e dos estoques de todas as espécies presentes. Ao se seguir as recomendações técnicas, também será preservada a pesca, atividade econômica que sustenta centenas de famílias da região.
O protocolo é resultado do Projeto Pesca Solidária, coordenado pela organização não governamental (ONG) Comissão Ilha Ativa (CIA), com a participação da Embrapa Meio-Norte (PI), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis), Instituto Federal de Educação do Ceará e universidades Federal e Estadual do Piauí. O trabalho foi financiado pelo Programa Petrobras Socioambiental e levou dois anos.
Entre as determinações do documento está o estabelecimento de uma área destinada somente à pesca com facho, atividade realizada sempre à noite com um facho de luz, para reduzir os conflitos entre os pescadores que usam outros instrumentos. O acordo fortalece também a proteção dos recursos hídricos, a educação ambiental, incentiva o turismo ecológico, disciplina as atividades econômicas e preserva a cultura dos nativos da área.
Com força de lei, as regras estão consolidadas na portaria 49, de maio de 2016, publicada no Diário Oficial da União, pelo ICMBio. Nela, fica estabelecida, entre outras coisas, uma área de berçário com 1.457,67 hectares para reprodução e recrutamento de peixes, restrita à pesca, com permissão para o uso de linha de mão e tarrafa e permanência dos currais já existentes (veja infográfico abaixo).
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, no Município de Parnaíba, a 348 quilômetros ao norte de Teresina, já está fiscalizando o cumprimento da portaria. Os pescadores estão fazendo o dever de casa. Até agora ninguém foi multado, segundo a analista Patrícia dos Passos Claro. As multas, que variam de R$ 500 a R$ 100 mil, serão aplicadas de acordo com o crime ambiental.
Um levantamento da ONG Comissão Ilha Ativa revela que cerca de duas mil famílias dos municípios de Cajueiro da Praia, no Piauí, Barroquinha e Chaval, no Ceará, dependem diretamente da atividade pesqueira no estuário dos rios Timonha e Ubatuba para o sustento. Segundo o estudo, o consumo médio de pescado per capita por ano é de 21,5 quilos. Em Chaval, o consumo é 26,3 quilos, acima da média mundial que é de 13,3 quilos. No Brasil, o consumo médio não passa de 6,7 quilos per capita/ano.
Protocolo da sobrevivência
Para chegar ao Acordo de Pesca, celebrado pela comunidade científica da região como um dos principais avanços na preservação da biodiversidade, pescadores e pesquisadores percorreram um longo caminho. Durante os anos de 2010 e 2011, foram realizados encontros que definiram, em uma carta-proposta, regras para preservar o estuário e a sobrevivência das comunidades. As pesquisas científicas eram o marco zero do protocolo.
“Daí, lembra a bióloga Francinalda Rocha, da ONG Comissão Ilha Ativa, nasceu o Projeto Pesca Solidária”. Ela conta que os pescadores queriam conhecer a área onde moram, o estoque pesqueiro e as espécies que vivem no estuário. Para atender a demanda, a Embrapa e as universidades Federal e Estadual do Piauí entraram no projeto estudando a qualidade da água e os principais peixes que habitam o estuário, como a tainha (Mugil curema), bagre-camboeiro (Sciades herzbergii), bagre-amarelo (Aspistor luniscutis), carapitango (Lutjanus jocu) e a pescada-amarela (Cynoscion acoupa).
Quando o time de cientistas entrou em campo em 2014, o pesquisador Alexandre Kemenes, da Embrapa, começou a monitorar a qualidade da água no estuário. Com uma equipe de estudantes, ele percorreu quilômetros dos rios Timonha e Ubatuba, desde as nascentes, na Serra da Ibiapaba, no Ceará, checando a temperatura, oxigênio dissolvido, pH e condutividade elétrica, transparência e turbidez. “De um modo geral, as condições ambientais desse ecossistema são boas”, conclui Kemenes.
A alimentação, reprodução e a diversidade de espécies foi outra etapa do estudo que envolveu os pesquisadores da Embrapa, UFPI, UESPI e CIA. Ao todo, foram identificadas 184 espécies. O professor Filipe Melo, da Universidade Estadual do Piauí, identificou 89 espécies, usando, uma vez por mês, o arrasto, que é uma rede em forma de funil. A diversidade das espécies e o ambiente preservado chamaram a atenção dele. “Foi enriquecedora a experiência”, destaca.
Na outra ponta da pesquisa de identificação das espécies esteve a bióloga Kesley Paiva, da ONG Comissão Ilha Ativa. Em praticamente dois anos, toda semana, ela buscou informações dos pescadores em quatro pontos de desembarque de barcos com peixes no Piauí e Ceará. “O trabalho foi uma aposta no futuro dos estoques pesqueiros da região”, disse.
Principais espécies encontradas no estuário, a tainha, o bagre-camboeiro, o bagre-amarelo, o carapitango e a pescada-amarela, consumidas em larga escala no País, foram estudadas pelos pesquisadores Alitiene Pereira, da Embrapa, Cezar Fernandes e Edna Cunha, da Universidade Federal do Piauí. Em um trabalho de fôlego, que resultou no livro A Pesca no Estuário do Timonha e Ubatuba, os cientistas mostram, em detalhes, todo o ciclo reprodutivo das espécies, alimentação e a diversidade dos peixes e de outros animais aquáticos.
A vida no estuário Timonha e Ubatuba
Chegar ao estuário dos rios Timonha e Ubatuba é mais que uma aventura. É carimbar o passaporte para um paraíso que ainda guarda uma riqueza ambiental como poucas no Brasil. A 400 quilômetros de Teresina e 500 quilômetros de Fortaleza, o estuário é um dos principais berçários de peixes e crustáceos do Nordeste, habitat de espécies marinhas em extinção, como o mero, a tartaruga marinha e o peixe-boi marinho.
Situado a oito quilômetros da praia de Barra Grande, no litoral do Piauí, o estuário é parte da “Rota das Emoções”, um roteiro turístico ligando ainda os estados do Maranhão e Ceará. O local concentra a segunda maior área de mangue do Nordeste, com cerca de 11 mil hectares. A primeira é no Delta do Rio Parnaíba (PI), com 29.701 hectares.
“O estuário integra a Rota do Atlântico para aves migratórias que vêm de outros continentes em busca de alimentos”, diz o jornalista e pesquisador Chico Rasta, que é um estudioso da área e participou ativamente do Projeto Pesca Solidária, fotografando peixes, tartarugas, aves e praticamente todo o trabalho dos cientistas.
Uma das preocupações dos pesquisadores do Projeto Pesca Solidária é com a ameaça de extinção do peixe-boi marinho (Trichechus manatus), que vem perdendo espaço costeiro de reprodução e berçário, devido às capturas acidentais. Segundo um estudo da Aquasis, publicado no livro Peixe-boi marinho: biologia e conservação, de 2016, ainda existem cerca de 1.104 exemplares desse animal entre o litoral do Norte e do Nordeste do Brasil.
A bióloga Liliana de Oliveira Souza, da ONG Comissão Ilha Ativa, ressalta a importância dessa espécie na conservação de estuários em todo o País: “A importância do peixe-boi marinho, em qualquer ambiente aquático, é muito grande. Os animais aquáticos dependem dele para a sobrevivência. Na verdade, ele é um indicador de saúde do ambiente. Tanto a urina como as fezes dele servem de alimentação para os outros animais e fazem o controle biológico do ambiente”.
Fonte: http://www.portaldoagronegocio.com.br